9.7.06

Cheguei hoje, de repente a uma sensação absurda e justa.
Reparei, num relâmpago íntimo, que nã o sou ninguém.Ninguém,
absolutamnte ninguém.Quando brilhou o relâmpago,
aquilo onde supus uma cidade era um plaino deserto; e a luz
sinistra que me mostrou a mim não revelou céu acima dele.
Roubaram-me o poder ser antes que o mundo o fosse. Se tive
que reincarnar,reincarnei sem mim, sem eu ter reincarnado.

Sou os arredores de uma vila que não há,o comentário prolixo a um livro
que não se escreveu. Não sou ninguém,ninguém.Não sei sentir, nem pensar, não sei querer.
Sou uma figura de romance por escrever,passando aérea, e desfeita sem
ter sido, entre os sonhos de quem me não soube completar.

Penso sempre, sinto sempre; mas o meu pensamento não contém raciocínios, a minha emoção não contém emoções.Estou caindo, depois do alçapão lá em cima, por todo o espaço infinito, numa queda sem direcção,infinítupla e vazia.Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada,
e nas águas que são mais giro que águas bóiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo-
vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio
sinistro e sem fundo.

E eu, verdadeiramnet eu, sou o centro que não há nisto
senão por uma geometria do abismo; sou o nada em torno do
qual este movimento gira,só para que gire, só para que gire, sem que esse centro
exista senão porque todo o círculo o tem.Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda.

E é, em mim, como se o inferno ele mesmo risse, sem ao menos a humanidade de diabos a rirem, a loucura grasnada do universo morto, o cadáver rodante do espaço físico, o fim de todos os mundos flutuando negro ao vento, disforme, anacrónico, sem Deus que o houvesse criado, se, ele mesmo que está rodando nas trevas das trevas, impossível, único, tudo.

Poder saber pensar!Poder saber sentir!

Minha mãe morreu muito cedo, e eu não a cheguei a conhecer...

Bernardo Soares " Livro Do Desassossego"

4 comments:

mitro said...

Deve ser sina de português...

Amaral said...

Li o teu comentário no meu cantinho e só posso dizer-te que eu próprio estou a passar momentos muito difíceis, mas nunca irei considerar-me um inútil.
Longe disso, Indie! Pese embora toda a tristeza que possas sentir, vais sempre encontrar a tua personalidade como ser de luz, como um ser pensante mas, antes de tudo, um ser de amor, que irá encontrar à sua volta a alegria de estar de bem com a vida!
Força, Indie!

Mac Adame said...

Ia mesmo dizer que, a escreveres assim, só podias ser uma grande escritora. Ignorância minha, que não conhecia este texto de um dos outros eus do Pessoa. Bem escolhido, independentemente do que te tenha levado a fazê-lo. Se significa que alguma coisa não corre bem, entende-o como uma fase passageira. As fases sucedem-se umas às outras e, mais tarde ou mais cedo, melhores dias virão. Se foi apenas pela beleza do texto, melhor, que é dos mais belos.

Vanda said...

É um grande desassossego. Mas tentar inverter esse quadro de pensamentos menos bons é uma capacidade que todos temos. É preciso um grande esforço, mas consegue-se.