4.5.08

Uma das minhas preocupações constantes é o compreender como é que outra gente existe, como é que há almas que não sejam a minha, consciências estranhas à minha consciência, que, por ser consciência, me parece ser a única. Compreendo bem que o homem que está diante de mim, e me fala com palavras iguais às minhas, e me fez gestos que são como eu faço ou poderia fazer, seja de algum modo meu semelhante. O mesmo,porém, me sucede com as gravuras que sonho das ilustrações, com as personagens que vejo dos romances, com as pessoas dramáticas que no palco passam através dos actores que figuram.

Ninguém, suponho,admite verdadeiramente a existência real de outra pessoa. Pode conceder que essa pessoa seja viva, que sinta e pense como ele; mas haverá sempre um elemento anónimo de diferença, uma desvantagem materializada. Há figuras dos tempos idos,imagens espíritos em livros, que são para nós realidades maiores que aquelas indiferenças incarnadas que falam connosco por cima dos balcões , ou nos olham por acaso nos eléctricos, ou nos roçam,transeuntes, no acaso morto das ruas. Os outros não são para nós mais que paisagem, e, quase sempre, paisagem invisível de rua conhecida.

Tenho por minhas, com maior parentesco intimidade, certas figuras que estão escritas nos livros, certas imagens que conheci de estampas, do que muitas pessoas, a que chamam reais, que são dessa inutilidade metafísica chamada carne e osso. E “ carne e osso”, de facto, as descreve bem; parecem coisas cortadas postas no exterior marmóreo de um talho, mortes sangrando como vidas, pernas e costelas de Destino.

Não me envergonho de sentir assim porque já vi que todos sentem assim. O que parece haver de desprezo entre homem e homem, de indiferente que permite que se mate gente sem que se sinta que se mate, como entre os soldados, é que ninguém presta a devida atenção ao facto, parece que abstruso, de que os outros são almas também.


Livro Do Desassossego

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