28.1.06

Lisboa, 2 de Junho de 1994

Querida Marta,

Tenho dado tudo por tudo para me aguentar, mas é tão difícil! O doutor Gonçalves( o meu novo psicólogo) diz que vou conseguir, mas não sei se é apenas para me encorajar.Deve ser uma táctica dos psicólogos para fazer de conta que toda a gente é capaz de tudo.
Seja como for,preciso de acreditar nele, já que em mim não acredito.Insiste em que tenho de desabafar,partilhar. O quê? com quem ?
Esta tarde,quando estava a baloiçar-me na minha lua,olhei para o pulso esquerdo e tive vontade de arrancar a pele para a tatuagem sair.Agora é tarde demais.O meu relógio continua parado nas zero horas de um dia que ainda não chegou.Quem poderá dar-lhe corda ?
Estou contente por não ter vendido a tua colecção de caléidoscópios, mas a verdade é que também não sei se seria fácil arranjar comprador, não sei se estes tubinhos mágicos têm aquilo a que se chama valor comercial.
Contigo sou sempre sincera, mas só contigo.
A minha mãe tem feito um esforço para falar comigo, mas não tem jeito, não é por mal.Falta de hábito...quando não sabe que assunto puxar, pôem-se a falar das clientes da loja, as Xaxões, as Pituchas, as Ninis, as Dadinhas, as Coitadinhas... O meu pai anda triste, mas não diz nada.No outro dia, quando olhou para mim percebi que se comoveu(talvez por eu estar muito magra) mas segue à risca o velho ditado " um homem não chora" e disfarça, põe um sorriso de plástico e faz de conta que está a correr tudo bem. Tenho pena do meu pai, tenho mesmo muita pena.Deve ser frustrante ter uma filha como eu, pior ainda do que ser pai do Pré-histórico, embora me custe um bocado a admiti-lo.
O meu quarto está atafulhado de coisas inúteis e não gosto da nova janela que colocaram para substituir a que eu parti o mês passado, num dia em que quis " voar" daqui para fora( mais um dia para esquecer...).
Que será feito do diogo?Também não sei nada do Luís, da Sara, das gémeas...Só o João pedro é que telefona de vez em quando,sempre animador" Daqui a uns dias já estás na maior,miúda, vais ver. É só uma questão de tempo". Tempo, o eterno enigma que eu gostav de desvendar...Disse-me também que quer vir ver-me, mas prefiro que ele não me veja assim.
Não saberia como explicar-lhe, e ele haveria de achar-me a pessoa mais estúpida, mais incoerente e mais absurda do planeta. Basta ouvi-lo ao telefone para perceber que não me perdoa. Não posso criticá-lo por isso.
Eu também não me perdoo. Em contrapartida,já consegui perdoar-te Marta.Finalmente!Ainda não compreendi as tuas razões(e talvez nunca venha a compreênde-las),mas devem ter sido fortes.Apesar de continuar a pensar que a tua família é melhor do que a minha,talvez tu tivesses descoberto algo de muito errado,alguma coisa que não conseguiste partilhar(a palavra que o meu psicólogo mais usa) com ninguém, nem comigo.Deve ter sido alguma verdade demasiado demasiado terível.Quanto a mim,já sei o que descobri.Descobri que a lógica só existe em matemática e que tudo é tão absurdo que só estamos em paz a dormir(quando não se tem sonhos como eu tenho) e descobri ainda que o meu melhor amigo é um cão( sempre é melhor do que não ter amigos, não é?).
Ás vezes lembro-me de como eu tinha a mania de ser perfeita e isso dá-me vontade de rir.As ideias ridículas que me vinhas à cabeça! Tanta coisa que eu não sabia à um ano atrás!Que ignorante que eu era!
Quando fizemos,lá na escola,aquela peça de teatro inspirada em ti,Os Amigos da Onça,o ano passdo,nunca imaginei que fosse tão fácil uma pessoa passar-se para lá,para o lado onde tu passate,o lado que eu sabia que estava ERRADO! quis tanto compreender tudo aquilo que te tinha acontecido,aquilo por que tinhas passado quando te afastaste de toda a genta que acabei por seguir um caminho muito parecido,talvez mesmo igual.Fui muito injusta por te ter condenado,criticado e até odiado,Marta.Acho que aprendi.Espero que não seja tarde.
Um beijo da
Joana

Maria Teresa Maia gonzalez " A Lua De Joana" ( o livro que conta em parte a minha história)

4 comments:

Anonymous said...

***

Amaral said...

Não é que a vida seja injusta. Nós todos temos o condão de nos negarmos a nós mesmos… Temos uma "vaga ideia" daquilo que podemos construir, mas quando uma qualquer tristeza ou falhanço nos atinge, deixamo-nos abater por essa "tragédia", deixando que seja ela a comandar a nossa vida. Acontece contigo, acontece comigo... e falta-nos uma mão que nos dê um pouco de alento, uma palavra que desperte a força que sentimos estar cá dentro...
Hoje, o dia está triste, chuvoso, escuro. Talvez amanhã, o Sol faça uma visita imprevista!...

Dra. Laura Alho said...

Esse livro tem qualquer coisa de comum em todos nós.
Marcou-me imenso na minha adolescência. E é bom que "marque" outras pessoas de forma a aprender a lição.
Beijinhos *

MM said...

Não conheço o livro em questão, mas presumo que a mensagem presente neste longo trecho te seja de alguma forma importante, porque caso contrário não entenderia a razão para teres colocado um texto tão diferente dos que já li aqui.

[www.marceladas.blogspot.com]