Teremos tido o que alguma vez julgamos ter perdido?
Quisemos a presença permanente mas nunca a tivemos
Nalgum momento feliz nalgum lugar propício
Amámos a integridade de um corpo como uma chama de universo
Mas esse momento durou com a verde intensidade de um
(bosque
E foi como se tocássemos o tronco de uma estrela
Em breve se apagou o lume que dançava em flutuantes corpos
No entanto se a cinza se acendia
Com a pontiaguda e frágil boca de um desejo obstinado
O mundo podia ondular como um harmónio verde
Em que as sombras e o sol e o mar ao fundo
Constituíam o lugar privilegiado de um sentir
Que se inebriava com as mescladas manchas
Que a luz e a penumbra espalhavam sobre os cavalos
Que pastavam tranquilamente entre os castanheiros
Era uma visão simples mas uma visão total
Porque as figuras tinham o timbre tranquilo do silêncio
Nós explorámos estas zonas de respiração plácida
E penetrámos às vezes numa clareira entre giestas vermelhas
Com a sensação de que podíamos tocar o ouvido de veludo do
(mundo
Mas isto tudo eram explorações intervalares
Que não anulavam o que sobrava sempre
Porque era o inexorável depois o incessante efectivo
E agora perguntamos
Como pode a vida ter passado como uma nuvem obscura
E continuar a passar
Como se não fôssemos mais do que folhas de cinza
Procurámos estar onde estávamos
Mas era tão difícil manter em equilíbrio a coluna do silêncio
Tão desejável no entanto como entrar
No interior de um ovo de veludo
E hoje entre as violentas garras
Que pela sua exacerbação parecem derradeiras
Ainda procuramos a sabedoria de estar
Sem qualquer esperança
Esperando no entanto a delicadeza extrema
Dessa presença aérea que não é nada
Porque é simplesmente a ilusão do mundo liberta na visão do
(desejo
António Ramos Rosa " Deambulações oblíquas"
30.5.08
25.5.08
A vida
A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
Mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
Quando não se espera, o atraso na preocupação
Dos teus olhos, e as nuvens que caíram
Mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
A abrir-se para dentro e para fora
Dos sentidos que nada têm a ver com círculos
Quadrados, rectângulos, nas linhas
Rectas e paralelas que se cruzam com as
Linhas da mão;
A vida que traz consigo as emoções e os acasos,
A luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
E dos encontros que sempre se soube que
Se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
Quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
O rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
Sob a luz indecisa que apenas mostra
As paredes nuas de manchas húmidas
No gesso da memória;
A vida feita dos seus
Corpos obscuros e das suas palavras
Próximas.
Mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
Quando não se espera, o atraso na preocupação
Dos teus olhos, e as nuvens que caíram
Mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
A abrir-se para dentro e para fora
Dos sentidos que nada têm a ver com círculos
Quadrados, rectângulos, nas linhas
Rectas e paralelas que se cruzam com as
Linhas da mão;
A vida que traz consigo as emoções e os acasos,
A luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
E dos encontros que sempre se soube que
Se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
Quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
O rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
Sob a luz indecisa que apenas mostra
As paredes nuas de manchas húmidas
No gesso da memória;
A vida feita dos seus
Corpos obscuros e das suas palavras
Próximas.
Nuno Júdice " Teoria Geral do Sentimento"
13.5.08
Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática.Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas. Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra.· O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não.
Elogio do Amor - Miguel Esteves Cardoso
Elogio do Amor - Miguel Esteves Cardoso
9.5.08
Deus escreve direito
Deus escreve direito por linhas tortas
E a vida não vive em linha recta
Em cada célula do homem estão inscritas
A cor dos olhos e a argúcia do olhar
O desenho dos ossos e o contorno da boca
Por isso te olhas ao espelho:
E no espelho te buscas para te reconhecer
Porém em cada célula desde o início
Foi inscrito o signo veemente da tua liberdade
Pois foste criado e tens de ser real
Por isso não percas nunca teu fervor mais austero
Tua exigência de ti e por entre
Espelhos deformados e desastres e desvios
Nem um momento só podes perder
A linha musical do encantamento
Que é o teu sol tua luz alimento
E a vida não vive em linha recta
Em cada célula do homem estão inscritas
A cor dos olhos e a argúcia do olhar
O desenho dos ossos e o contorno da boca
Por isso te olhas ao espelho:
E no espelho te buscas para te reconhecer
Porém em cada célula desde o início
Foi inscrito o signo veemente da tua liberdade
Pois foste criado e tens de ser real
Por isso não percas nunca teu fervor mais austero
Tua exigência de ti e por entre
Espelhos deformados e desastres e desvios
Nem um momento só podes perder
A linha musical do encantamento
Que é o teu sol tua luz alimento
Sophia de Mello B. "O búzio de cós e outros poemas"
6.5.08
E hoje quem sou eu?
You don´t have to worry about me...
Sory.. I´ll do it again
Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos.
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentando
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.
Vinicius de Moraes
Gosto de coisas tristes mas contentes. Não disse isto, desculpa, o que quero dizer é que gosto de coisas felizes, mas tristes. Ora, “a mesma coisa”, dirás! Talvez, mas o que te quero revelar é que sinto que sempre gostei de chorar quando estou alegre. A tristeza mais bela de todas é a felicidade com lágrimas nos olhos.
( Fernando Alvim)
4.5.08
Uma das minhas preocupações constantes é o compreender como é que outra gente existe, como é que há almas que não sejam a minha, consciências estranhas à minha consciência, que, por ser consciência, me parece ser a única. Compreendo bem que o homem que está diante de mim, e me fala com palavras iguais às minhas, e me fez gestos que são como eu faço ou poderia fazer, seja de algum modo meu semelhante. O mesmo,porém, me sucede com as gravuras que sonho das ilustrações, com as personagens que vejo dos romances, com as pessoas dramáticas que no palco passam através dos actores que figuram.
Ninguém, suponho,admite verdadeiramente a existência real de outra pessoa. Pode conceder que essa pessoa seja viva, que sinta e pense como ele; mas haverá sempre um elemento anónimo de diferença, uma desvantagem materializada. Há figuras dos tempos idos,imagens espíritos em livros, que são para nós realidades maiores que aquelas indiferenças incarnadas que falam connosco por cima dos balcões , ou nos olham por acaso nos eléctricos, ou nos roçam,transeuntes, no acaso morto das ruas. Os outros não são para nós mais que paisagem, e, quase sempre, paisagem invisível de rua conhecida.
Tenho por minhas, com maior parentesco intimidade, certas figuras que estão escritas nos livros, certas imagens que conheci de estampas, do que muitas pessoas, a que chamam reais, que são dessa inutilidade metafísica chamada carne e osso. E “ carne e osso”, de facto, as descreve bem; parecem coisas cortadas postas no exterior marmóreo de um talho, mortes sangrando como vidas, pernas e costelas de Destino.
Não me envergonho de sentir assim porque já vi que todos sentem assim. O que parece haver de desprezo entre homem e homem, de indiferente que permite que se mate gente sem que se sinta que se mate, como entre os soldados, é que ninguém presta a devida atenção ao facto, parece que abstruso, de que os outros são almas também.
Livro Do Desassossego
Ninguém, suponho,admite verdadeiramente a existência real de outra pessoa. Pode conceder que essa pessoa seja viva, que sinta e pense como ele; mas haverá sempre um elemento anónimo de diferença, uma desvantagem materializada. Há figuras dos tempos idos,imagens espíritos em livros, que são para nós realidades maiores que aquelas indiferenças incarnadas que falam connosco por cima dos balcões , ou nos olham por acaso nos eléctricos, ou nos roçam,transeuntes, no acaso morto das ruas. Os outros não são para nós mais que paisagem, e, quase sempre, paisagem invisível de rua conhecida.
Tenho por minhas, com maior parentesco intimidade, certas figuras que estão escritas nos livros, certas imagens que conheci de estampas, do que muitas pessoas, a que chamam reais, que são dessa inutilidade metafísica chamada carne e osso. E “ carne e osso”, de facto, as descreve bem; parecem coisas cortadas postas no exterior marmóreo de um talho, mortes sangrando como vidas, pernas e costelas de Destino.
Não me envergonho de sentir assim porque já vi que todos sentem assim. O que parece haver de desprezo entre homem e homem, de indiferente que permite que se mate gente sem que se sinta que se mate, como entre os soldados, é que ninguém presta a devida atenção ao facto, parece que abstruso, de que os outros são almas também.
Livro Do Desassossego
1.5.08
Amália - Abandono
David Mourão Ferreira neste poema fez homenagem aos presos politicos do anterior Regime Português, que eram deportados para o campo do Tarrafal nas Ilhas de CaboVerde, Alaín Oulman, fez esta música tão envolvente que até uma pessoa se arrepia ao uvir a Grande Amália, em uma das suas mais belas criações.
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